Análises e Notícias
Antifrágil
Durante o aberto dos Estados Unidos de 2003, Pete anuncia seu afastamento definitivo das quadras. “Nossa rivalidade sempre foi um dos pontos altos da minha carreira. Perder para Pete me custou um monte de dores. Mas, no longo prazo, acabou me tornando mais resiliente. Se eu tivesse derrotado Pete mais vezes, ou se ele tivesse vindo de outra geração, eu teria um histórico melhor e poderia até ter sido considerado um jogador melhor, mas teria sido um tenista pior.” – Andre Agassi, ex-tenista profissional.
Não existe no vocabulário uma palavra que designe o oposto de frágil. Entretanto, o matemático Nicholas Nassim Taleb definiu que “antifrágil” não é só algo resistente e resiliente, mas aquilo que melhora conforme é exposto à volatilidade, desordem ou qualquer outra causa estressora. O agente mais importante que proporciona a “evolução” do sistema é o estresse.
Durante a guerra fria, a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética não teve efeitos somente no campo armamentista. Os russos saíram na frente mandando a cadela Laika e, em seguida, Yuri Gagarin ao espaço. O presidente Kennedy se comprometeu publicamente em bater os soviéticos, sendo o primeiro país a chegar na lua.
A rivalidade entre os países trouxe muitos avanços tecnológicos à humanidade, como lentes resistentes a arranhões, pneus radiais, cirurgias oculares (LASIK), materiais resistentes ao fogo, purificação de água, sensor de imagem (CMOS) – que utilizamos nas câmeras dos celulares, painéis solares, computadores e softwares, dentre outras invenções.
Vacinas a partir de mRNA
Na década de 70, uma cientista húngara chamada Katalin Karikó desenvolveu a ideia do mRNA (Messenger Ribonucleic Acid). Em teoria, é como entregar um manual de instruções para o corpo humano produzir uma proteína específica. Neste caso, para combater algum vírus que o organismo não conhece.
Nosso corpo já fabrica células naturalmente, mas escolher quais produzir é inovador. Você poderia mandar seu organismo criar novas células para reparar algum órgão ou para se defender de novo invasor, por exemplo.
Apesar de parecer simples, somente em meados dos anos 2000 é que Karikó e outro pesquisador, Drew Weissman, foram capazes de fazê-lo funcionar. A dificuldade era que, ao receber a “mensagem” via proteína, o corpo a interpretava como um invasor. Dessa forma, era atacada pelo sistema imunológico antes que fosse capaz de realizar sua tarefa. Mas, os dois cientistas descobriram uma maneira de ajustar os blocos que constroem a molécula e entregar a mensagem com eficácia.
Em 2018, a DARPA (Agência de Projetos e Pesquisa Avançada dos Estados Unidos), financiou a Moderna para o desenvolvimento de vacinas para o vírus, incluindo o zika. Em 2018, a Pfizer fez o mesmo com a BioNTech para produzir vacinas para a gripe.
Com o domínio da tecnologia, a edição do mRNA tornou-se muito rápida. Como o vírus da gripe sofre mutações frequentes, você poderia adaptar as vacinas para gripe em um intervalo inferior a um ano, por exemplo.
Vacinas contra a covid-19
Em janeiro de 2020, quando os pesquisadores chineses publicaram a sequência genética do vírus da covid-19, a empresa Moderna foi capaz de finalizar sua vacina em apenas 48 horas. Em 14 de dezembro de 2020, após 40 anos, a primeira vacina utilizando essa tecnologia foi aprovada para uso emergencial.
O FDA, agência reguladora dos Estados Unidos, teve que ponderar entre o risco da pandemia e o da nova tecnologia. Apesar de ser ainda cedo para avaliarmos os possíveis riscos de longo prazo, a utilização do mRNA é aparentemente promissora.
Desde vacinas como a do zika e malária até tratamentos de câncer, existe um imenso campo de pesquisa e aplicação agora que essa porta foi aberta. Considere que anualmente morrem em torno de 10 milhões de pessoas vítimas do câncer. Não seria uma surpresa esperar que, no longo prazo, as vidas salvas pelo estresse causado pela covid-19 sejam superiores às vidas perdidas?
Atualmente, vários caminhos estão sendo perseguidos pelas companhias. Com a queda do custo no sequenciamento genético, hoje as empresas são capazes de produzir vacinas para cânceres personalizadas para cada paciente. Ao mesmo tempo, existe a possibilidade de terapias de espectro mais amplo. Outros estudos envolvem principalmente vírus, mas até mesmo uma vacina para prevenir alergias é alvo de pesquisas.
Existem dois tipos de RNA sintéticos: o mRNA convencional e o saRNA auto-amplificado (tradução livre self-amplifying mRNA). A utilização do convencional está sendo investigada em vários estudos na fase pré-clínica e clínica, principalmente em terapias contra doenças infecciosas e cânceres. O sucesso do mRNA convencional depende da quantidade de “mensageiros” entregues adequadamente na vacinação. Sendo que a proteção pode depender de grandes doses ou repetidas aplicações.
A tecnologia de saRNA utiliza a ideia de que o nosso próprio organismo possa replicar a vacina, garantindo assim uma resposta imunológica mais forte com uma quantidade muito baixa de saRNA. Por exemplo, em estudo para vacina da influenza em ratos, a proteção com o uso do saRNA deu-se com apenas 1.25 microgramas, contra 80 microgramas do mRNA convencional.
As vacinas contra a covid-19 foram um avanço tanto na adoção de tecnologia quanto na velocidade na aprovação em função da pandemia. Os tipos mais comuns até então eram utilizando um vírus/bactéria morto ou atenuado, inserido no nosso organismo para o ensinar a produzir formas de combater o agente agressor antes que, de fato, apareça. Outro modelo de vacina pode injetar uma toxina ao invés de um vírus. Esse é o caso da contra o tétano.
Já o novo tipo de vacina é diferente, pois usa só uma parte do vírus ao invés dele inteiro. No caso da vacina para a SARS-CoV-2, eles focaram no “espinho” (spike) do vírus, que é a maneira que o vírus se liga nas nossas células.
Todas as funções no corpo humano são comandadas por proteínas. Então, nossas células estão fabricando elas a todo tempo. Nosso DNA tem duas fitas. No caso, para fabricar as proteínas, nosso corpo faz cópias de uma fita do DNA. Essa cópia se chama RNA mensageiro ou mRNA. Cada mRNA tem informação para fazer um tipo de proteína. Desse modo, nossa célula “lê” o mRNA, segue as instruções e fabrica essa proteína.
E foi assim que conseguimos fabricar a vacina com o mRNA. No caso do SARS-CoV-2, a partir da sequência genética do vírus, os pesquisadores focaram nos spikes. Eles identificaram a parte da sequência genética que os cria e sintetizaram somente a parte do spike como vacina, economizando tempo no desenvolvimento e manufatura e, por consequência, nos recursos financeiros.
Uma vez injetado no organismo, nossas células começam a fabricar essas proteínas. O sistema imunológico reconhece a ameaça, fabricando anticorpos para combatê-la. O problema com manuseio do mRNA é que ele é difícil de produzir e se degrada facilmente, dependendo de baixas temperaturas para manter sua integridade (Pfizer-BioNTech e Moderna).
Outro tipo de vacina é a de adenovírus (AstraZeneca e J&J), que usa o DNA, mais estável que o mRNA. O problema desta técnica é que os pesquisadores têm que usar um vírus inofensivo para “carregar” o DNA e, com o passar do tempo, o nosso corpo pode reconhecer esse vírus reduzindo a eficácia de doses futuras.
As figuras acima, apesar de fora de escala, ilustram a diferença entre o que é um processo tradicional de aprovação de um medicamento versus o esforço para aprovação das vacinas para combater a covid-19. Tenha em mente que, no fluxo tradicional, não estamos nem considerando as restrições financeiras impostas por empresas privadas. Cada etapa de desenvolvimento pode consumir milhões de dólares, e os medicamentos e cada passo depende de aprovação dos gestores/conselho de administração.
O investimento em empresas de biotecnologia é particularmente difícil, pois a profundidade de conhecimento técnico e alto risco são fatores determinantes e desafiam até investidores experientes no ramo. Diferente de uma empresa de software ou hardware, que muitas vezes passam anos até que se tornem mainstream ou sejam vendidas, companhias de biotecnologia estão a todo tempo deparando-se em ruas sem saída.
Outro entrave é a questão regulatória. Em países liberais, a introdução de novas tecnologias no transporte, fabricação e serviços, dentre outros, praticamente independe de aprovação regulatória. No caso do setor de saúde, como é de se esperar, as aprovações seguem critérios técnicos rigorosos e barreiras burocráticas que, em muitos casos, podem demorar décadas entre a descoberta e o uso no dia a dia. Empresas como Pfizer, Moderna, Biontech, Aldevron, Precision Nanosystems, CureVac, Arcturus Therapeutics, eTheRNA Immonotherapies e Orna Therapeutics, dentre dezenas de companhias neste ecossistema e envolvidas no desenvolvimento, aprimoramento, manufatura e distribuição desta tecnologia passam por isso.
Acredito que a porta aberta com essas novas vacinas é bastante promissora na criação de novas moléculas com aplicações em diversos campos da medicina, aumentando a eficácia nos tratamentos de enfermidades, proteção e a própria qualidade de vida das pessoas. O DNA é para a medicina o que o transistor foi para a indústria de tecnologia. Teremos mais velocidade, eficiência e custos decrescentes ao longo do tempo.
Momentos de crise são também momentos de mudança.